RAINHA DE MISERICÓRDIA INSONDÁVEL


 No ano de 1651, ainda permaneciam isolados nos montes e na floresta da província da Venezuela, os índios coromotos, sem querer ter contato algum com os missionários e a civilização.
Tanta bondade e império emanavam da presença e das palavras da celestial Dama, que o indômito cacique, maravilhado, dispôs-se a cumprir sua vontade.
Certo dia - no fim desse ano ou quiçá no início do seguinte - quando o cacique dessa tribo, homem valente e irascível, e sua mulher se dispunham a vadear um riacho, eis que viram uma dama de indescritível majestade e formosura avançando em sua direção, caminhando sobre as águas.
Pasmos e extasiados, permaneceram imóveis, contemplando a misteriosa senhora que, ao aproximar-se deles, sorriu maternalmente e disse na própria língua dos coromotos: "Ide aonde se encontram os homens brancos para que derramem água sobre vossas cabeças e assim possais ir ao Céu".
As águas purificadoras do Batismo
Decidido a conduzir sua tribo para junto dos homens brancos, o cacique colocou-se à espreita, aguardando a passagem de alguns deles por aquelas solitárias paragens. E a Divina Providência, que com bondade infinita tudo dispõe para nosso bem e salvação, não fez esperar muito aqueles índios escolhidos pela Rainha de todos os corações.
João Sanchez, um honrado espanhol que cultivava umas terras na região, precisou dirigir-se apressadamente à distante aldeia de El Tocuyo, uma das poucas então existentes naquela província. Assim, passou ele nas proximidades do local onde viviam os Coromotos.
João Sanchez, auxiliado por sua fiel esposa, tudo fez para converter e civilizar os Coromotos, os quais acompanharam com fervor e alegria a catequese que recebiam.
Passaram-se os meses, e aqueles índios que haviam venerado as águas sobre as quais a Santíssima Virgem tinha aparecido, inclinavam agora piedosamente a cabeça para receber as águas purificadoras do santo Batismo.
No entanto, o feroz cacique, o primeiro a quem apareceu Nossa Senhora, negava-se a ser batizado e distanciava- se paulatinamente das aulas de catecismo. As saudades da vida sem freio nem moral que levara na floresta, irrompiam como um vulcão no fundo de sua alma.
Na tarde de sábado, 8 de setembro de 1652, João Sanchez mandou reunir todos os Coromotos para participar de um ato religioso em honra a Nossa Senhora.

O cacique, enfurecido, recusou-se a comparecer a uma cerimônia em louvor d'Aquela que o havia feito abandonar a vida selvagem e pagã. Ao entardecer, encontrava-se ele na sua choupana com a esposa, a irmã desta, chamada Isabel, e um sobrinho de doze anos, todos já batizados e fervorosos cristãos.
Subitamente, apareceu no umbral da cabana a Santíssima Virgem, a mesma "bela Senhora" que haviam visto andando sobre as águas do regato. Da celestial aparição emanava tal fulgor que toda a choupana ficou iluminada pelos raios dessa luz "igual à do sol quando está ao meio-dia, mas sem queimar como este", segundo declarou mais tarde a índia Isabel.
O cacique, sem levantar-se da esteira onde repousava, bradou encolerizado:
- Até quando me hás de perseguir? Bem podes partir, pois não mais farei o que mandas. Por ti tudo deixei e vim aqui passar trabalhos!
Maravilhada com a excelsa visitante e cheia de vergonha pela inimaginável dureza do índio, a esposa o repreendeu dizendo:
- Não fales assim com a "bela Senhora". Não tenhas tão mau coração!

Não pôde o cacique suportar mais tempo a presença de Nossa Senhora, que permanecia no umbral da casa olhando-o com maternal bondade. Levantou-se de um salto e apanhou o arco e as flechas, gritando desesperadamente:
- Matando-te, deixar-me-ás! Neste instante, a Santíssima Virgem, majestosa e refulgente, penetrou no interior da choça e adiantou-se em direção ao índio, de tal modo que este não teve espaço para disparar a seta.

 Louco de ódio, ele jogou as armas por terra e precipitou-se sobre a Soberana Senhora com o intuito de lançá- la fora da casa. Porém, ao estender os braços para tentar agarrá-la, desapareceu Ela repentinamente, e uma triste escuridão sucedeu à magnífica luz sobrenatural.
Longo tempo permaneceu imóvel o cacique, na mesma posição que tomara ao precipitar-se sobre a aparição, apertando alguma coisa que havia ficado em uma de suas mãos. Finalmente disse com voz trêmula: "Aqui a tenho presa".
Na hora extrema, a conversão

Nesse mesmo dia, sob uma chuva torrencial, o cacique ordenou que toda a tribo partisse para os montes, abandonando a civilização. E aqueles pobres índios recém-convertidos seguiram seu chefe no caminho da infidelidade e da barbárie. Mas apenas haviam se adentrado na floresta quando o cacique rolou por terra, dando gritos de dor. Uma serpente venenosa o tinha picado... restavam-lhe poucos minutos de vida. Vendo-se, então, perdido, e reconhecendo que
 a Divina Justiça o punia por tanta maldade, começou a implorar o perdão em alta voz e a clamar pelo Batismo.
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Mas, naquelas solidões, quem poderia derramar sobre ele as águas regeneradoras? A tribo assistia muda e confundida à sua agonia.
Ao ouvir os angustiados clamores do cacique moribundo, acorreu pressuroso um mulato que andava por aquelas paragens e imediatamente o batizou. Sereno e resignado, então, ele recomendou à tribo que nunca deixasse de cumprir a vontade da Mãe de Deus, e logo em seguida exalou seu último suspiro.
Quis Nossa Senhora, nas aparições de Coromoto, demonstrar ao mundo, e de modo especial à América, que Ela é Soberana, sobretudo, na sua bondade. É possível imaginar dureza espiritual maior que a daquele cacique? Entretanto, a misericórdia d'Ela triunfa sobre a mais empedernida das maldades humanas.
Na pessoa do índio, objeto de tão imensa clemência, estava representada a humanidade inteira, estava cada um de nós, estava eu... Sim, eu, pois tantas e tantas vezes sou convidado a confiar em seu maternal amparo, nesse perdão que dulcifica qualquer dureza, nessa bondade que vence a mais obstinada ingratidão!

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